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SM: Causas e diagnósticos (portuguese)

SM: Causas e diagnósticos

por Odd Reiersøl
(agradecemos a tradução por: blueshine)

O psicólogo e sexólogo norueguês Odd Reiersøl, neste artigo, argumenta pela abolição do diagnóstico de fetichismo, fetichismo de transversão, sadismo e masoquismo do ICD-10, Classificação Internacional de Doenças, versão 10.

Introdução

Neste artigo escrevo principalmente sobre SM, mas já que muitos profissionais falam sobre “parafilias” generalizadas ou sobre fetichismo como sendo intimamente ligadas ao SM, farei, por todo o artigo, referências a “fetichismo”. Argumentarei sobre a abolição do diagnóstico de “fetichismo”, “fetichismo de transversão”, “sadismo” e “masoquismo”. Usarei, na maior parte das vezes, o pronome “ele” em vez de “ela”, porque há mais conhecimentos sobre a “parafilia” masculina. Isso não significa que eu queira excluir as mulheres da minha discussão.

O que é SM?

Pontos de vista tradicionais comumente definem que SM é uma “perversão” onde pessoas têm prazer em atividades sexuais que inflijam dor e/ou humilhação. A pessoa que se excita sexualmente por infligir dor/humilhação é chamada de “sádico”. A pessoa que se excita sexualmente por receber estímulos dolorosos/humilhantes é chamada de “masoquista”. A palavra “perversão” foi originalmente usada dentro da terminologia legal, o equivalente psiquiátrico mais moderno seria “parafilia” ou “desvio sexual”(DSM-IV, ICD-10).

Eu vejo o SM como um jogo de poder erótico consentido entre dois adultos. Quando as atividades não são consensuais, ou quando um dos parceiros é tratado com desrespeito, elas se tornam abusivas e podem ser apropriadamente chamadas de “perversas”. O saudável, consensual jogo de poder erótico, pode dar prazer às pessoas. São variações ou preferências sexuais muito aceitáveis. Esses jogos de poder eróticos podem envolver dominação verbal ou física. Ordens, espancamentos, imobilizações e jogos de mestre/escrava são exemplos.

Já que “sadomasoquismo”, para muitas pessoas, carrega uma conotação de violência, pode ser melhor usar um termo diferente como, por exemplo, D/s (Dominação e Submissão), mas é difícil mudar terminologias estabelecidas.

Que tipo de pessoas pratica o SM?

A opinião tradicional de cem anos atrás definia que essas pessoas eram imorais, doentes ou degeneradas. Os pontos de vista não distinguiam entre violência e jogos consensuais. Dados psiquiátricos eram usados para provar esses pontos de vista.

Por exemplo, William Stekel (Stekel, 1930), um famoso psiquiatra e psicanalista, escreveu um livro sobre casos psiquiátricos em fetichismo e SM. Eram pessoas realmente desesperadas, muitas delas em conflito com a lei. Esses pontos de vista eram tirados desses casos.

Vale a pena observar a opinião clerical tradicional condenando todo tipo de atividade sexual que não ocorresse entre homem e mulher, e a atividade sexual necessária para a procriação como objetivo ser aceitável. Qualquer tipo de sexo que não usasse a posição de missionário (o homem por cima!) entre o homem casado e sua esposa era considerado “perverso”.

Foi apenas nos anos 70 que cientistas sociais tentaram conduzir estudos objetivos desses fenômenos sexuais (embora Kinsey tivesse umas poucas questões sobre atividades de infligir dor, como mordidas, no seu famoso estudo dos anos 50). Um dos primeiros estudos foi conduzido por Spengler (1977). Um questionário foi enviado a anunciantes em revistas de SM e a membros de clubes de SM. Moser e Levitt (Weinberg, 1995) fizeram um estudo mais extenso alguns anos mais tarde também baseado em questionários. Robert Stoller (Stoller, 1991) usou um método “etnográfico” para entrevistar praticantes de SM nos anos 80.

Estes estudos indicaram que os praticantes de SM são pessoas muito diferentes. Muitos deles ocupam posição elevada na sociedade, respeitados, com alto nível de educação. Não há razão para crer que há maior prevalência de psicoses ou desordens de personalidade do que na população em geral.

O que faz as pessoas desenvolverem um forte interesse ou preferência por SM?

Se até os psiquiatras e os psicólogos têm tradicionalmente se preocupado com a “etiologia”, acho que seria interessante levantar essa questão sobre a preferência ou forte interesse. Freqüentemente encontro pessoas que se perguntam: “Por que sou como sou?”

Visão psicoanalítica

Na visão psicanalítica o “sadismo” é quase sempre entendido como reação primária e o “masoquismo” como reação secundária ao trauma. O “masoquismo” é secundário no sentido de que o “sadismo” é dirigido para dentro, contra si mesmo. Se a criança tem uma mãe que nega satisfazer suas necessidades, ela pode, quando adulta, procurar vingança em fantasias sádicas e possivelmente realizá-las sexualmente contra mulheres. Sadismo “oral”, “anal” e “fálico” foram postulados. Dessa forma, a vingança pode vir como resultado da angústia de castração na fase edípica (“fálica”). O conflito edípico pode, alternativamente, resultar diretamente em submissão (sendo assim, em masoquismo), como estratégia de fuga. Ele “deixa estar” por desistência.

A compulsão à repetição tem lugar proeminente no pensamento psicanalítico. “Pessoas SM” precisam recriar um velho cenário traumático na tentativa e resolver, aqui e agora, o que foi impossível de resolver no passado. Se, por exemplo, a criança foi espancada pela mãe, ela pode precisar repetir esse cenário tendo uma namorada lhe fazendo o mesmo quando adulto. Ou ele pode reverter essa situação espancando sua namorada.

Há numerosas explicações entre profissionais psicanaliticamente orientados (talvez tantas explicações quanto profissionais). Outra bem conhecida é sobre expiação. “Já que pequei (por ser sexual) sou mau e preciso punição”. Nesse caso, o “masoquismo” parece ser uma reação primária, o “sadismo” será a projeção e o sádico pune o outro ao invés de punir a si mesmo.

Parece que Freud tinha uma visão ampla do SM no sentido de que ele conhecia a seqüência dos estados “normais” aos “extremamente” sádicos, ambos em pessoas masoquistas. Ele associou homens sociáveis, assertivos, dominadores, como tipos sexualmente “sádicos” e mulheres receptivas, submissas, como tipos “masoquistas”. Apenas quando esses impulsos se tornam exagerados que a pessoa se torna “perversa”. Freud também entendeu o fetichismo como uma perversão “primária”, o que significa que o SM de alguma forma tem o fetichismo como base. É também importante notar que Freud, inicialmente, pensou o sadismo como força primária (em relação ao masoquismo), mas, posteriormente passou a crer que o masoquismo veio primeiro.

É preciso alertar que as palavras “sadismo” e “masoquismo” são usados em diferentes sentidos (dos sexuais) dentro da visão psicanalítica. Por exemplo, Wilhelm Reich (Reich, 1945) falou sobre “estruturas de personalidade” sádicas e masoquistas. Há formas de caracterizar tipos de personalidades e isso não tem necessariamente a ver com sexualidade.

Robert Stoller, um psiquiatra e psicanalista, se divide quanto ao pensamento psicanalítico quanto aos conflitos da infância contribuam à “etiologia”. Ele foge ao tradicional porque acentua a formação genética assim como outros fatores biológicos e culturais como importantes contribuições. Ele critica a psicoanálise de ser dogmática e não se interessar em investigar os fenômenos da vida real. “Teorias psicoanalíticas que comecem por chamar de perversos as pessoas fronteiriças, pre-psicóticas e que tais, não fazem justiça às áreas maciças de funções bem sucedidas presentes em muitas pessoas perversas ou às áreas maciças de patologia presentes naqueles que não são classificados como perversos” (nesse livro de 1991 ele atipicamente usa a palavra “perversão” ao invés de “parafilia”). Stoller delineia mais ou menos a seguinte conclusão de suas investigações etnográficas dos anos 80 bem como de outras pesquisas em relação às causas e às dinâmicas:

Fatores biológicos:

· “É sensato pensar que certas áreas anatômicas são constitutivamente mais prazerosas em uma pessoa do que na outra; o desenvolvimento de zonas libidinais contribuem para um estilo erótico”.
· Homens têm uma propensão para fetichizar (por “fetichizar” Stoller descreve um fenômeno que eu preferiria chamar “objetificar”)”ou seja, reduzir a apreciação de alguém a apenas sua anatomia, ou menos (isso sendo a dinâmica fundamental da perversão) em contraste ao desejo oposto nas mulheres por relacionamento, intimidade e constância. Ele supõe que a evolução filogenética é responsável por essas diferenças de gênero. Ele acrescenta, no entanto que essas diferenças quanto ao gênero sexual podem ser explicadas culturalmente.
Fatores culturais:
· Cultura é uma fonte de consciência, por exemplo: “.. quando a igreja medieval aceitou a flagelação como um ato piedoso, os masoquistas tiveram um assombroso caminho, mais ou menos livre de culpa, ao êxtase que a igreja de hoje bloqueou através de sua compreensão do masoquismo perverso”.
· A cultura é uma fonte de sugestões para as pessoas definirem seus comportamentos eróticos. Stoller refere-se aos “jogos erótico perversos”, isto é, um encorajamento aos indivíduos experimentarem práticas para o prazer erótico, mesmo quando a cultura desaprova essas práticas.
Fatores psicodinâmicos:

Trauma: Assim como outros psicanalistas, Stoller inclui o trauma como um fator de forte contribuição. Ele é mais cauteloso do que muitos dos tradicionais pois levanta importantes questões sobre como o trauma contribui exatamente e sob que circunstâncias. Por que algumas pessoas tornam-se interessadas em SM e outras não, tendo tido o mesmo tipo de trauma? Ele especula a partir de seus dados etnográficos e de sua prática psicanalista que as pessoas que praticam SM consensual são “neuróticas, como nós todos”, enquanto que os praticantes não-consensuais são mais severamente afetados demonstrando fortes sinais de desordens da personalidade ou, nos piores casos, de psicoses.
· “Ansiedade de simbiose”: Os meninos precisam desempenhar um ato de separação de suas mães que não é requisitado às meninas. Quando isso é difícil, eles podem temer tornarem-se femininos e podem temer tornarem-se íntimos de meninas e mulheres. “Muito da masculinidade, em todas as culturas, é construída a partir da manifestação desse conflito: da ênfase ao falo, do medo da intimidade com mulheres, do medo de ser humilhado pelas mulheres, da necessidade de humilhar as mulheres e da fetichizição das mulheres.” Ele apregoa que a ansiedade da simbiose pode ser a base para a maioria das perversões, por exemplo, fetichismo, voyeurismo e sadomasoquismo. Na sua maneira de ver essas são diferentes maneiras de criar ou preservar distância das mulheres.

· Defesa contra ansiedade, vergonha e culpa.
Teoria comportamental
Rosenhan e Seligman (1995) apresentam uma visão comportamental das causas das parafilias.Eles usam o paradigma pavloviano onde um reflexo condicionado (CS) é associado a um reflexo incondicionado (US) de estimulação genital e a uma resposta incondicionada (UR) de prazer sexual. Como resultado, futuramente um CS produzirá uma resposta condicionada de excitação sexual. Fetichismo por pés pode ser usado como exemplo. A visão e o toque de um pé no pênis pode se tornar um CS resultando em ereção ou orgasmo, o US. O CS não se extingue na parafilia, devido à masturbação que reforça a conexão entre CS e US. Mas por que algumas pessoas se masturbam com o CS e outras não é ainda um mistério.
Além disso, eles usam um “prevenção” como forma de explicar o fato de que um limitado conjunto de objetos tornem-se parafílicos. Essa prevenção é talvez “meio programada”(i.e. biologicamente determinada) e de determinadas espécies.

Sexologia “Moderna”
John Money (Money, 1986) é um dos mais importantes e conhecidos sexologistas que escreveu exaustivamente sobre a parafilia. Ele usa tanto a psicoanálise quanto a teoria comportamental para como bases para seu pensamento. Uma de suas definições mais proeminentes é a de “transformar a tragédia em triunfo”, a tragédia como vandalização da sexualidade de alguém ou um “gráfico do amor”. O triunfo é a satisfação sexual obtida por ser parafílico. Money define o “gráfico do amor” como “uma representação ou padrão de desenvolvimento existindo simultaneamente no pensamento e no cérebro retratando o amor idealizado, o caso de amor idealizado, e o programa idealizado de atividade sexo-erótica projetada no imaginário ou mesmo realizada com o parceiro” (Money, 1998). O gráfico do amor de uma pessoa é, supostamente, tão característico dessa pessoa como suas digitais. Uma pessoa com parafilia como parte de seu gráfico do amor teve seu gráfico vandalizado.
Gráficos do amor podem ser vandalizados de muitas formas, por exemplo, por pais que interferem no desenvolvimento sexual de uma criança. Ele afirma que a parafilia é virtualmente não-existente em sociedades que não colocam tabus no desenvolvimento sexo-erótico das crianças. Por outro lado, ele enfatiza que tanto a hereditariedade quanto o ambiente contribuem para o aparecimento das parafilias. Componentes hereditários não são necessariamente genéticos, pois podem, por exemplo, ser fruto de influências hormonais no ambiente intrauterino.
Money é conhecido pela extensiva classificação das parafilias, dividindo-as em categorias e sub-categorias e dando-lhes nomes específicos (como “acromotofilia”) que ele pegou do grego e do latim. Sua classificação é muito mais extensa do que as encontradas nos mais importantes manuais de diagnósticos (DSM e ICD).
Os sexologistas variam em sua maneira de pensar sobre as origens da parafilia. Uma opinião comum é que o desenvolvimento da parafilia está conectado à rejeição do indivíduo à sexualidade, ao corpo e à intimidade, e que há um conflito emocional em relação aos seus pais. O conflito emocional faz o indivíduo desconectar sua sexualidade de outros indivíduos e conectá-la a objetos ou situações.

Meus comentários sobre a “etiologia”
Acho razoável acreditar que há tantas origens para a parafilia quanto indivíduos parafílicos. De acordo com minha experiência e com os estudos que li, indivíduos de Sm constituem um grupo diverso que não tem necessariamente nada em comum exceto o fato de serem interessados em SM.
Muitos dos profissionais que tentaram explicar as origens do SM têm bons conceitos, mas eu não acredito que as explicações são universalmente válidas. É muito fácil postular um conflito e um trauma como necessariamente fatores fundamentais, especialmente quando dados do paciente são usados. Se isso fosse correto, eu esperaria uma maior prevalência de psicopatologias entre indivíduos SM do que na população em geral. Pelos estudos feitos, no entanto, não há razão para acreditar nisso. Como Stoller diz: “Muitos dos pacientes informantes são estáveis profissionalmente; a maior parte graduados ou mais, conversadores animados, com bom senso de humor, atualizados na política e nos eventos mundiais, e nem mais nem menos deprimidos do que a sociedade como um todo. “Como todo mundo, eles são neuróticos”.
Então, se, como Stoller diz, SM é uma PTSD (Desordem Pós Traumática por Stress ou Tensão) da infância, nós todos provavelmente temos algum tipo de PTSD, indivíduos SM ou não. E SM é virtualmente uma solução saudável comparando-se, por exemplo, a uma OCD (Transtorno Obsessivo Compulsivo).
Um dos pontos fracos nessas explanações é que quase sempre falam só de homens. Naturalmente, os homens tradicionalmente reprimiram menos suas inclinações sexuais do que as mulheres, assim sendo manifestaram seus impulsos sexuais de forma mais abrangente. Alguns deles tiveram problemas (algumas vezes até com a Lei) e terminaram num consultório médico sendo diagnosticados. Isso nos leva a um outro ponto fraco: muitos dos casos coletados vêm de casos patológicos.
Acho razoável perceber (como Stoller e Money) que há várias causas que contribuíram. A educação é obviamente insuficiente, já que há fortes razões para crer que ambientes equivalentes podem dar resultados diferentes. Indivíduos que foram espancados quando crianças podem ou não ser levados a espancar. E indivíduos que nunca foram (ou pelo menos dizem que não) espancados gostam de o ser durante os jogos SM. Talvez alguns indivíduos sejam mais atraídos a uma forte estimulação do que outros. O ânus é uma zona erógena para a maioria das pessoas e talvez mais sensível em umas do que em outras. Já que há diferenças genéticas nas partes do corpo de cada um, por que diferenças geneticamente determinadas em diferentes partes do corpo não respondem a vários tipos de estímulos?
Concordo com Stoller de que há causas biológicas, culturais e ambientais, que freqüentemente operam em interação simultânea. Acredito que a “fixação” (Stoller) ocupa uma parte importante, porque interesses sexuais são muito “resistentes à extinção”. Não acho que os teóricos comportamentais tenham acertado em que a masturbação seja um fator crucial para manter o interesse. Mais provável que o interesse tenha sido invocado uma vez e para sempre fixado, compelindo portanto o indivíduo a continuar se masturbando.
O interesse pode ser despertado de várias formas, não necessariamente traumáticas. Se há um trauma envolvido, talvez isso possa explicar a fixação pois a excitação pode ter sido tão grande que o impacto emocional da experiência fica gravado para sempre no cérebro e no sistema nervoso. Mas posso bem imaginar que os estados hiper-excitados tenham diferentes causas. Uma irmã mais velha que coloque sua bota no pênis do menino durante uma brincadeira pode ser o exemplo de forte excitação resultante do vigor do jogo mais o toque em seu pênis. Seu fetiche por botas e possivelmente um interesse masoquista pode ser devido ao intenso prazer num estágio de super-excitamento sem nenhum trauma envolvido. Naturalmente, sua estrutura genética pode ser de grande influência nessa hora. Entretanto, alguém pode argumentar que se um indivíduo adulto pode relacionar-se sexualmente apenas com botas e não com pessoas, deve haver algum trauma em sua vida que faz ser impossível uma relação sexual com outras pessoas. O(s) trauma(s) será, nesse caso, relativo à sua inabilidade em criar relacionamentos, não a fetiches ou interesses SM. Tenho certeza de que psiquiatras quase sempre se confundem sobre esses assuntos. Além disso há uma razão para acreditar que a maioria de nós sofremos algum tipo de trauma, e que isso poderiam, em casos individuais, ser prova de que o trauma é a causa para o interesse no SM. “Veja, esses SM todos tiveram traumas em suas vidas”.
De qualquer maneira, concordo com Stoller em que, aqueles que abusam de outros, sexualmente ou não, são indivíduos comprometidos psiquicamente. Eles devem ter sofrido traumas tradicionais (como terem sido vítimas de abusos) ou terem sido severamente negligenciados, de tal forma que suas habilidades para relacionarem-se com outras pessoas de forma respeitosa e empática tenha sido profundamente prejudicada.
Um ponto sobre a interação entre a biologia e o ambiente: há razões para crer que alguns meninos têm uma estrutura biológica mais feminina do que outros (Bateson). Um menino assim pode se sentir especialmente inclinado a brincar com meninas e de forma submissa. Sua estrutura biológica dá-lhe impulsos para escolher ambientes que lhe dê oportunidades de experimentar uma forte excitação sexual por meninas que o dominem. Aí, o interesse masoquista pode se desenvolver. É claro que não afirmo que todos os homens masoquistas são “efeminados”. Há diferentes razões para todos os interesses e preferências sexuais.

Por que o SM (e o fetichismo) ainda é passível de diagnóstico?

O SM não é apenas categorizado como uma “parafilia”, ele é também diagnosticado como tal. Sexualidade desviante tem sido vista como imoral (“perversa”) pelo clero como também pelos leigos. Essa avaliação tem servido como ferramenta para a opressão política. O controle da sexualidade das pessoas toca profundamente em suas personalidades. Com a medicalização da sociedade, imoralidade foi substituída por doença. Inúmeras práticas sexuais foram rotuladas de “desvios”, o que significa “doente” no contexto diagnóstico. Muitas dessas práticas são hoje consideradas normais, ou pelo menos não como doenças (por exemplo sexo oral, sexo anal, homossexualidade). Uma razão para isso é a crescente aceitação de atividades sexuais como prazeres legítimos (tanto para homens quanto para mulheres); a atividade sexual não necessariamente tem a procriação como objetivo atualmente.

Outra razão é a permissividade e a relativa abertura sobre a diversificação, e os homossexuais tornaram-se um forte e influente grupo lutando por seus direitos humanos. O mais autorizado sistema de diagnóstico psiquiátrico mundial é o DSM-IV (Manual Estatístico e Diagnóstico de Doenças Mentais, Quarta Edição) pela Associação Psiquiátrica Americana e o “Desordens Mentais e Comportamentais” subgrupo do ICD-10 (Classificação Internacional de Doenças, versão 10) pela Organização Mundial da Saúde.

Há, provavelmente, muitas diferentes razões do porquê SM e fetichismo são diagnosticados como “parafilias”:
· Categorização e estigmatização da minoria não a elimina. Indivíduos estigmatizados precisam falar e exigir aceitação, especialmente quando o grupo é invisível. Estabelecer categorias tendem a continuar sua existência (apenas porque eles existem) até que alguém lute por mudança.
· Muitos praticantes de SM nem sabem que eles são diagnosticados. A maioria deles estão “dormindo” nessa parte do mundo. Indivíduos com interesses em SM e em fetiches normalmente não procuram por terapia para mudar seus interesses sexuais. Esses indivíduos que foram diagnosticados são normalmente os reincidentes a que se referem o sistema legal.
· Dentro do diagnóstico de sádico e de masoquista não há distinção claro entre jogos consensuais e abuso sexual.
· Psiquiatras, pelo menos os tradicionais, tendem a acreditar que o SM é causado por severo trauma e, portanto, é um fenômeno anormal.
Na verdade houve algum esforço para mudar, o que resultou no “critério B” adicionado a todas às sub-categorias das parafilias no DSM-IV: “As fantasias, impulsos ou comportamentos sexuais causam, clinicamente, significantes aflições ou prejuízos nas importantes áreas de funcionamento social, ocupacional etc.”. Este critério precisa ser encontrado como condição para que o diagnóstico de “parafilia” seja feito. O critério não é (ao menos não claramente, explicitamente ou consistentemente) implementado no ICD-10. Ambos os sistemas de diagnóstico aboliram o diagnóstico de homossexualidade.

Por que os diagnósticos de “fetichismo” e de “sadomasoquismo” deveriam ser abolidos?

· Isso é um assunto de direitos humanos. Diagnosticar tipos de sexualidade é um desrespeito assim como discriminar pessoas baseando-se na raça, etnia ou religião.
· Pessoas podem usar o diagnóstico para usar o abuso legítimo. Há ainda muito respeito e crença nos diagnósticos médicos. .
· Os “desviados” freqüentemente vêem a si mesmos como menos valorizados (eles sentem o estigma).
· Diagnósticos são confusos. Por exemplo, o critério de diagnosticar o “fetichismo de transversão” (DSM-IV) aplica-se apenas a homens heterossexuais. Fico feliz que homossexuais e mulheres estejam isentos (e eles têm sido bons em se agrupar contra a discriminação), mas homens e heterossexuais também deveriam. Uma razão pela qual mulheres estejam isentas desse diagnóstico é, provavelmente, que mulheres usam roupas masculinas de forma melhor aceita socialmente do que homens degradam seu status se usarem roupas femininas. O diagnóstico de “Sadismo” e “Masoquismo” são certamente confusos porque abuso e violência estão na mesma categoria que jogos sexuais consensuais. O diagnóstico de “Pedofilia” não tem nada a ver com fetichismo ou SM consensual, mas é diagnosticado como “Parafilia” do mesmo nível.
· O rótulo de “Parafilia” no sistema de diagnóstico parece inconsistente. Muitos tipos de parafilia (como o, por exemplo, definido John Money) não são mencionados. Desde que muitos tipos de abuso sexual são diagnosticados como parafilia, parece estranho que o estupro não o seja. Um estuprador não é necessariamente sádico porque ele pode não ter necessariamente excitação sexual advinda do sofrimento da vítima. A prática de sexo sem segurança também não é diagnosticada como tal (pelo menos não como uma desordem sexual).
· As categorias do DSM-IV para fetichismo e SM são redundantes, porque se as fantasias causam aflição ou prejuízo funcional, há muitas outras categorias (fora da parafilia) para serem diagnosticadas.
· Interesses por SM e fetichismo são basicamente “normais” (assim como algumas pessoas são atraídas por pernas com meias, outras pés com sapatos “sexies”, etc., e a dimensão desse poder é usualmente presente em algum grau, isto é, quem fica por cima e quem fica por baixo durante a atividade sexual). O interesse só é passível de ser diagnosticado se for excessivo, mas esse excesso pode ser aplicado a qualquer coisa na vida. Um colecionador de selos não será diagnosticado como “filatélico” só porque fica excessivamente absorto com essa atividade.
· O ICD-10 privilegia as relações sexuais: “Fantasias fetichistas são comuns, mas não são consideradas desordens a menos que levem a rituais tão compulsivos e inaceitáveis que interfiram na relação sexual causando um esgotamento no indivíduo”. Então, se as pessoas não querem relações sexuais, isso pode ser sério! Sadomasoquismo, no entanto, não significa causar um esgotamento no indivíduo (inconsistência).
· Independente do que cause o SM e o fetichismo, não há razões para diagnosticá-los como doenças. É um absurdo tão grande quanto diagnosticar as pessoas “judias”, “cristãs” ou “muçulmanas”.
· Não é a sexualidade em si que é um problema. Entretanto, qualquer tipo de sexualidade (até a atividade heterossexual “careta”, “normal”) pode ser pervertida quando abuso e desrespeito fazem parte dela.
· Diagnosticar pode afetar os indivíduos de muitas maneiras negativas.
Possíveis conseqüências por ser diagnosticado
· Pessoas podem acreditar que estão doentes porque autoridades médicas assim o dizem.
· Imagem negativa de sis mesmo, baixa auto-estima.
· Obsessões e compulsões, por exemplo, o alcoolismo, o abuso das drogas e o vício em trabalhar.
· Suicídio ou tentativa de suicídio.
· Ansiedade sexual, dificuldades sociais.
· Vários tipos de comportamento auto-destrutivo (por exemplo, mutilação própria e passividade).

Comentários finais: Qual é o problema realmente?

Stoller diz: “Mas agora, o ponto principal. Embora estudar o sentido da perversão valha a pena, o que interessa é a questão básica: Que ameaça qualquer indivíduo, não apenas o sadomasoquista, inflige a qualquer outra criatura? Não apenas na imaginação ou no teatro do comportamento erótico (como, por exemplo, no dos sadomasoquistas consensuais)”. Stoller usa a palavra “perversão” mais ou menos como sinônimo de “parafilia”. Eu acho que seria útil reservar a palavra “perversão” para atividades sexuais ameaçadoras e outras abusivas e desrespeitosas. A categoria de “perversão” poderia então incluir atividades como: estupro, coerção sexual, dolo sexual, pedofilia e inúmeras práticas sexuais perigosas. Estou falando realmente sobre a moral na nossa cultura, em nossos dias e época, e isso é que é importante. Se nós, por qualquer razão, precisarmos manter uma categoria diagnóstica de “desvio sexual”, eu certamente incluiria as práticas imorais nessa categoria.
De qualquer forma, qual é realmente o problema dos indivíduos “perverso” neste sentido? É um problema sexual ou alguma coisa a mais? Quando uma pessoa ultrapassa os limites de outra pessoa ou se comporta de forma auto-destrutiva, esta pessoa tem um problema e pode ser um bem sério, mas não um problema sexual. O homem que bate na esposa (sendo sexualmente excitado com isso ou não) tem um sério problema, como um transtorno de personalidade (o que também não é um problema sexual). O indivíduo adulto que se envolve sexualmente com crianças tem um problema grave. Ele provavelmente tem dificuldades em desenvolver intimidade com outros adultos, ou seja, em outras palavras ele tem um problema de contato.
Ainda umas poucas palavras sobre intimidade: Muitas pessoas, sejam “normais” ou “parafílicas”, têm dificuldade em tornar-se íntimo do parceiro apropriado. Se a pessoa é “parafílica”, a psiquiatria é rápida em atribuir o problema a um desvio de sexualidade. Seria mais apropriado ver a dificuldade com a intimidade como um problema, do que estigmatizar o tipo de sexualidade. Não há nenhuma evidência de que pessoas SM ou fetichistas são menos aptos a amar seus parceiros do que qualquer outra. Se a pessoa tem problema com intimidade, isso não é um problema sexual. Entretanto, isso pode ser muito sério.

Bibliografia

DSM-IV: Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, Fourth Edition, American Psychiatric Association, Washington DC.
ICD-10: The ICD-10 Classification of Mental and Behavioral Disorders, World Health Organization, Geneva.
Money, John: “Lovemaps”, Irvington Publishers, Inc., N.Y., 1986.
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Reich, Wilhelm: “Character Analysis”, Farrar, Strauss and Giroux, N.Y. 1945.
Rosenhan, D.L. and Seligman, M.: “Abnormal Psychology, third edition”, Norton, N.Y. 1995.
Stekel, Wilhelm: “Sexual Aberrations”, Liveright Inc, N.Y., 1930
Stoller, Robert: “Pain and Passion – A Psychoanalyst Explores the World of S&M”, Plenum Press, N.Y., 1991.
Weinberg, Thomas (Ed.): “S&M – Studies in Dominance and Submission”, Prometheus Books, Amherst, New York, 1995.